sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Lisboa de Cesário e de Sophia


CESÁRIO VERDE

Quis dizer o mais claro e o mais corrente
Em fala chã e em lúcida esquadria
Ser e dizer na justa luz do dia
Falar claro falar limpo falar rente


 Porém nas roucas ruas da cidade
A nítida pupila se alucina
Cães se miram no vidro de retina
E ele vai naufragando como um barco


 Amou vinhas e searas e campinas
Horizontes honestos e lavados
Mas bebeu a cidade a longos tragos
Deambulou por praças por esquinas


Fugiu da peste e da melancolia
Livre se quis e não servo dos fados
Diurno se quis porém a luzidia
Noite assombrou os olhos dilatados


 Reflectindo o tremor da luz nas margens
Entre ruelas vê-se ao fundo o rio
Ele o viu com seus olhos de navio
Atentos à surpresa das imagens

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Ilhas, 1990

domingo, 16 de setembro de 2012

Lisboa de Cesário e de Eugénio

[abre amanhã mais Uma Estação;- o Agricultor estará no seu Campo;
- nunca foi Fácil; muito menos em tempos de «descartáveis»]

[e há o reencontro com os textos de outras, anteriores Estações]

EM LISBOA COM CESÁRIO VERDE

Nesta cidade, onde agora me sinto
mais estrangeiro do que um gato persa;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver as gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também;
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu sei já bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua.


1986

Eugénio de Andrade, Homenagens e outros epitáfios [1.ª ed: 1974]

Transcrito das páginas 249-50 da Poesia, 2000

 

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Lisboa remota

[Transplantado do «Alpabiblio»]


III
As suas mais remotas imagens
de Lisboa: casas cor-de-rosa, afogueadas pelo Sol;
varandas confusas; nítidos degraus;
luzes de eléctricos, ao crepúsculo,
a fazerem dançar a névoa
sobre carris humedecidos.

David Mourão-Ferreira, Auto-retrato - primeiros traços
(transcrito de Jogo de espelhos, 2.ª ed, 2001