(inevitável, pensar no «Sentimento de UM OCIDENTAL» - ora dum Africano, Aquiles...)
No
Rossio, as pessoas ainda voltam a casa. Aquiles passeia como se tivesse fugido
de casa, como se tivesse deixado o pai para trás. A barriga colada às costas é
a única recordação que tem de Cartola quando está no centro da cidade. Estão
unidos pela fome.
Lisboa
ganhou um nome e uma forma, fez-se Lisboa para ele. Agora, ao crepúsculo, a
forma esbate-se e a cidade é um gás irrespirável. Anda por ela como um cão
manco a farejar, um príncipe dos cães vadios. Aquiles vai invencível na
solidão, enche o peito de ar, inspira contra o vento, resiste. Sente-se limpo,
lavado, cheira o perfume que pôs no cabelo, o vento entra-lhe pelo nariz. Ele
pode tudo, quer tudo, consegue tudo. É o homem que se encontrou sozinho em
Lisboa.
E
logo afrouxa à medida qua as ruas esvaziam como o mesmo cão sem esperança de
que alguém o leve para casa, vai de gigante a formiga no tempo que leva a
descer uma travessa.
[…]
De
noite, perde o medo: é da cor da cidade, caminha sem o fardo de ser visto,
ninguém dá por ele. Tem a cor dos pombos, dos vagabundos, dos gatos, das putas
do Cais do Sodré, cuja cara não distingue vendo-as de passagem, os seus cabelos
caju lambidos, os lábios gastos; da cor dos táxis estacionados a ouvirem
relatos, da cor dos telhados, das estátuas, da cor do céu.
[…]
Para
quê ter pressa de ir para casa? Os pombos dormem no Rossio pousados na estátua.
Choveu e o chão da praça rebrilha à luz dos candeeiros. Ele é um marinheiro em
terra, um pescador sem história, o nativo perfumado, o operário coxo.
Meu
bom Aquiles, quão longe estás tu de casa? Já não há outra casa para além dos
toldos da Rua Augusta, do cheiro a mijo das casas de banho do Terminal do
Rossio, das Escadinhas do Duque, que sobe aos tombos, escadinhas de Sísifo. Não há pressa nem
de ter casa nem de ter pai nem de ter mãe. A noite salva-o de estar sujo por
dentro. Aquiles tem a cor da noite e não carrega aos ombros o fardo de ser quem
é.
Djaimilia Pereira de Almeida, Luanda, Lisboa, Paraíso,
2018, Companhia das Letras, pp. 168 - 170