- de livro de 2015, dito no «Vida Breve» de 15 de Abril de 2024;
LISBOA EM GAZA
Quero ver a cidade de cima
quando chego, mas só quando parto,
aglomerado de prédios mal unidos
o corpo desviado. Letra a letra,
inclinam-se à velocidade do avião
no baloiço do anjo. como se Trakl
pela mão de Celan fosse seu irmão
de asa incestuosa em metal simbólico.
Tristão não tive, Isolda não sou
em gritaria de barca nova, mas
quero ver a cidade de cima
quando parto, mas só porque chego.
Não a Lisboa martelada na pedra,
ignara, mas a que vive em estado
onírico, de visão colcheia, sonhada
sem ti no prodígio da distância.
Vária a sinto, intensa, abrasada
de olhos baixos ; o desejo é fel,
coisa vã, e não há tréguas em Gaza
nem felicidade entre irmãos tantos.
Quero ver a minha cidade de lado
distendida no alto de uma ferida.
cerzida sem cativeiro com a linha
das veias, lutando por guerras outras.
Ainda assim podemos deter-nos
em Lisboa, e dizer-lhe, «muda, nem tudo
expirou». Há água e vinho, paz mínima,
e direito ao desalento, e eu sei que não
existe mais nenhum sítio no mundo
onde, mesmo em fuga, eu queira morar.
Ana Marques Gastão, Assírio & Alvim, 2015, L de Lisboa, pp. 48-49