terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Cais do Sodré; Americano; Cardoso Pires

Fot.a de  Filipa Fernandez, na p. 15 
do «Público - rep.a daí
 Se quarteirões «inteiros» continuam a ser transformados em «TURIST.ces», é porque  há uma «inabalável certeza» quanto à  «transitoriedade» da situação actual...

 É a vez do «Americano», - «à beirinha» do Centenário - cf. o «Público» de hoje



RECORTE de «Lisboa, Livro de Bordo» (também repr.o no «Público»):

"[...] Não há dúvida, os bares são realmente navegações pessoalíssimas. Do outro lado da rua tenho O Americano que, como figura de proa, não ostenta um relógio de intrigar mas um possante urogalo embalsamado num altar de parede. Em tempos foi um balcão de suevos, daneses e britânicos, funcionários, todos eles, das agências de navegação do Cais do Sodré, e aqui, hoje que o dia está de feição, torno a tropeçar noutro poeta: o Pessoa. (…) Também ele, nos gloriosos anos trinta, frequentava O Americano às horas litúrgicas dos morning drinkers. Navegações, é o que eu digo. Nos bares do Cais do Sodré ninguém está livre de apanhar com um poeta à deriva pela proa.
Hoje O Americano perdeu lastro, balança à tona dum passado de bebedores em inglês, reflectidos no gin tonic ou no sling. Está quase em seco, como se vê, sem esses navegantes de balcão: e a emoldurar a sua solitude exibe calendários de ship-chandlers com navios de grande curso a fumegarem nas paredes."

José Cardoso Pires, Lisboa Livro de Bordo, D. Quixote, 1997, pp. 81-82 (reprod. da 4.ª ed., de 1998)

domingo, 13 de dezembro de 2020

«Lisboa Literária», de Tabucchi e..., por Tolentino Mendonça

 Recortes:

QUE HORAS SÃO AÍ?

Lisboa continua a ser uma cidade literária. Isto é, uma cidade que não coincide necessariamente com a sua geografia visível. Uma cidade que é maior do que aquela que a cartografia designa. O trabalho de um escritor não é só uma operação de desmontagem do tempo: ele faz o mesmo em relação ao espaço. Em parte a cidade, tal qual historicamente se apresenta, pode ser reconhecível no que escrevem. Há a Lisboa de Cesário Verde e de Pessoa, de Saramago, Cesariny, Lobo Antunes ou [...]

Sei que muitos italianos vêm a Lisboa trazendo na bagagem o romance “Afirma Pereira”, de Antonio Tabucchi. E que vão tomar café ao Orquídea seguindo os passos do protagonista ou se metem no 28 para verem como Lisboa é lentamente metafísica e cansada ou são mais benévolos a julgar a ventania do entardecer do que alguma vez os locais o serão. [...]

A este propósito, Lisboa tem uma grande dívida para com Tabucchi, [...]  Num conto inédito, que acaba de ser editado em Itália, e que se intitula “Que Horas São Aí?”, é essa exatamente a intriga. Lojas que deixaram de existir e foram substituídas por outras, lacunas, distâncias e dobras que o tempo acentua, enigmas deixados em herança, ruas e sofrimentos que os mapas não assinalam. Face a isso, a tarefa da literatura é dupla: por um lado, tornar consciente em nós o impacto avassalador da vida, mas, por outro, tentar uma espécie de reparação. Que Tabucchi explica assim: a história é uma criatura glacial, não tem piedade de nada nem de ninguém. Mas a literatura existe para dar uma hipótese à piedade e para que a versão dos vencidos possa ser escutada.

                                  «Expresso», n.º 2511, «E» – [Revista], 11 - 12  - 2020, p. 90