sábado, 9 de maio de 2020

Em Lisboa, com Pessoa... Ou «a minha cidade», F. Fernandes

- O Chiado, por onde D. andou no dia 19, começa a «estar um pouco mais povoado»; por ela Deambula o Cronista, «para cá e para lá», no Tempo e no Espaço» - Ferreira Fernandes, «DN», 09-05
FRAGMENTOS:
[...] Nesta semana, fui pela Rua Garrett. E, em subindo, uma foto me veio à memória, ano 1935. A Polícia de Trânsito ensinava o povo a subir pelo passeio da esquerda e a descer pelo da direita, para que a multidão não se atropelasse... E eu, nesta semana, fui pelo meio do asfalto, despreocupado, dando as costas aos automóveis que não vinham. O mundo agora está diferente. 
Chegado lá cima, vi que a solidão cai sempre bem a Fernando Pessoa. Não que a cadeira ao seu lado estivesse vazia, como quase sempre. Não estava. Sentado nela estava um homem da minha idade, sem pressa de selfie e nem sequer máquina de fotografar ou telemóvel inteligente. Sentado, companheiro, mais nada.[...]
[...] homem que nesta semana esteve uma eternidade - desde mim subindo devagarinho da Bertrand, até à boca do metro, onde fiquei discreto - ter sentido ser um companheiro do poeta. Evidentemente que ele sabia que a solidão de Pessoa está sempre povoada. E eu, ao vê-los no diálogo calado de um quase vazio Chiado, senti-me feliz cidadão de Lisboa. Do porto de partida da mensagem, da palavra que move os homens, de um pequeno país para o mundo. Da minha cidade.   [...]Na Lisboa presente, voltei à de sempre. Um dia, na guerra mundial [...] Voltei à Baixa para perceber a solidão que me marcara. Depois vi, em frente ao Londres Salão e na Casa Tavares e Tavares e outras lojas de tecidos e panos, mulheres velhas e jovens de máscara. Esperavam a vez para entrar, para comprarem tecidos e panos. Para sobreviverem fazendo máscaras salvadoras.
Porto de abrigo dos seus e dos de fora, Lisboa. Já vos disse? A minha cidade.

sábado, 2 de maio de 2020

Rua Morais Soares, por Tolentino Mendonça

- as recentes «operações sanitárias» em pensões que agora têm o nome global de «Hostel» estarão «na base» desta crónica de Tolentino Mendonça - AQUI, pelo menos para os dois parágrafos iniciais;

Recorta-se o 3.º parágrafo, com acrescento de sublinhados:

[...] Parece que este finisterra é apenas um compasso de espera feito de vidas precárias, de pensões baratas e sobrelotadas, de população flutuante, de comércio desembaraçado, em grande parte anónimo e informal. E nem é difícil dar-se conta daquilo que paira no ar: uma espécie de expatriamento que é mais fundo do que ter simplesmente deixado uma pátria; uma condição dialetal, que é nunca mais voltar a falar com segurança, e por inteiro, uma língua: só um estranho meio dialeto, só umas quantas palavras; ou uma inexorável solidão humana que se espalha, tornada o cheiro de toda a pele. Contudo, é um erro pensar que esta Morais Soares é um sítio sem história. Pelo contrário: como poucos, ele devolve-nos com brutalidade à história; somos aqui atirados para o coração convulso da nossa época; e podemos lê-la não na ideologia, não nas idealizações, mas na carnalidade da vida. [...]

José Tolentino Mendonça, «Rua Morais Soares», «Expresso», 01 - 05 - 2020, Revista “E”, p. 90