quarta-feira, 8 de maio de 2024

Rua do Arsenal (Ana Paula Jardim)

 - ontem, CONS. na LUZ + livro de 38 poemas, tendo Lisboa «e Tejo e tudo» como um dos Motivos centrais; nele, de novo regressa Cesário, por outras mãos, que buscam outras «Visões de Artista»...;
- de um dos dois poemas menos curtos (o outro é «Cais do Ginjal»), a II Estrofe (de VI):

RUA DO ARSENAL
[...]
II
O barulho dos teus passos confunde-se com uma manifestação súbita
De figurantes
Que desfilam pela estrada
Carruagens com um rei morto e deposto
Pela Carbonária
Uma rainha alta, e esguia e andrógina
Com uma espada de flores na mão
Afiada como espinhos
E que maneja como uma Amazona
A pele de uma raposa ao pescoço
Morta
Ruge e esbraceja como louca
Ficas parada no meio do alcatrão
Rodeada por revolucionários de espada na mão
E cravos no cano
Em tanques de guerra cobertos de pombas brancas
Enquanto no cimento do edifício em frente
Ocre, escuro e oxidado
As luzes do entardecer pincelam vultos
Tristes, desfigurados
Engolidos pelo tempo
[...]

Ana Paula Jardim, rua do arsenal, p.30 (29-33) 

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Lisboa em Gaza, Ana M. Gastão

 - de livro de 2015, dito no «Vida Breve» de 15 de Abril de 2024;

LISBOA EM GAZA

Quero ver a cidade             de cima
quando chego, mas só quando parto,
aglomerado de prédios mal unidos
o corpo desviado. Letra a letra,
inclinam-se à velocidade do avião
no baloiço do anjo. como se Trakl
pela mão de Celan fosse seu irmão
de asa incestuosa em metal simbólico.

Tristão não tive, Isolda não sou
em gritaria de barca nova, mas
quero ver a cidade         de cima
quando parto, mas só porque chego.
Não a Lisboa martelada na pedra,
ignara, mas a que vive em estado 
onírico, de visão colcheia, sonhada
sem ti no prodígio da distância.

Vária a sinto, intensa, abrasada
de olhos baixos ; o desejo é fel,
coisa vã, e não há tréguas em Gaza
nem felicidade entre irmãos tantos.
Quero ver a minha cidade de lado
distendida no alto de uma ferida.
cerzida sem cativeiro com a linha
das veias, lutando por guerras outras.

Ainda assim podemos deter-nos
em Lisboa, e dizer-lhe, «muda, nem tudo
expirou». Há água e vinho, paz mínima,
e direito ao desalento, e eu sei que não
existe mais nenhum sítio no mundo
onde, mesmo em fuga, eu queira morar.

Ana Marques Gastão, Assírio  & Alvim,  2015, L de Lisboa, pp. 48-49