terça-feira, 8 de maio de 2012

Largo do Carmo

(contém o recorte lido no vídeo)

[...]É possível definir Lisboa como um símbolo. Como a Praga de Kafka, como a Dublin de Joyce ou a Buenas Aires de Borges. Sim, é possível. Mas, mais do que as cidades, é sempre um bairro ou um lugar que caracterizam essa definição e a fidelidade tantas vezes inconsciente que lhes dedicamos. O Chiado, neste caso. A sua geografia cultural, o seu resplendor diurno, a paz provinciana das suas ruas à noite, tanta coisa, tanta coisa.
[...]
E se desço alguns metros e me vejo no Largo do Carmo, com o chafariz ao centro salpicado de passarinhos, então alguma coisa muito vertical me suspende por inteiro porque foi nesse lugar que vivi o momento mais comovedor da minha vida de cidadão. Largo do Carmo do ano de 74, quem o pode esquecer? Era primavera e a capital proclamava a Revolução dos Cravos diante dos donos da Ditadura encurralados num quartel.
Volto lá vezes e vezes depois do incêndio. As chamas não chegaram até ali, pombas minuciosas cobrem o largo e ouve-se água a correr. Chiado, a paz depois do tumulto. Que feliz um lugar como este que, apesar de sismos e de chamas, teve a fortuna de ser o palco da hora que libertou o país.
Olho e recordo, mas há uma parte dele que está desfigurado para sempre. E isso dói, não esquece. Quando aquelas cicatrizes se tiverem fechado como será este rosto de mim mesmo?

José Cardoso Pires. Lisboa Livro de Bordo - vozes, olhares, memorações. 4.ª ed., Lisboa, D. Quixote, 1998, (1.ª: 1997), pp. 74-75

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