segunda-feira, 25 de março de 2024

«Vocês pagam», "Levantamento da cidade de Lisboa"; Cravo, M. Velho da Costa

  - Representações, sobretudo, do «Portugal de 74-75», em «IntensaJusta-Posição Estilística»; obra de 76, reimpressa em 94, e agora em 2024, quase 50 anos depois...; 
- Excerto(s) do Bloco «Levantamento da cidade de Lisboa» (pp.129-135)  [sublinhados acrescentados], com «ecos de Fernão Lopes»:

    Vocês pagam. Os meus melhores filhos novos foram levados a sujar-se sem honra, ao engano. As minhas ruas foram silenciadas, os meus emissores de som e de imagem, boca e olhos de ouvir-me, trocados pelos vossos. Abrigo há gerações o que vocês não podem nem querem - faquistas e ciganos e prostitutas velhas, marítimos e crioulos fugidos à fome. Tudo acoitei na minha barriga de ruas salitrosas, calçadas pretas. [...]

Vocês pagam. Tremeram de me ver nua finalmente, coberta de panos vermelhos, a minha gente desfilando com as cabeças, martelos de aço coloridos, o punho no ar, o meu braço faquista finalmente ao léu. Vocês tremeram, daqui ao Oriente que a minha virtude de arejar vos abriu. Vocês tremeram quando os meus filhos de salários de fome e os meus mulatos vos mijaram em foice os palácios que vocês mandaram construir para aa vossas visitas de provincianos ricos. [...]

Todos, todos se calaram perante a minha miséria miúda, a minha crença mentida, os meus flancos de rio industriosos estancados, o tolhimento dos meus bairros de lata, as minhas veias cortadas a doer-se para o Sul, traídas, traídos, porque eu, posta como estava na minha festa tonta, nas minhas renovadas alegres forças, deixei que vocês viessem pela calada esquartejar uma por uma as minhas cabeças de prata, os meus melhores filhos tresloucados de uma outra razão e audazes. Vocês pagam. [...]

Maria Velho da Costa, Cravo (1976), 2024, pp. 131-133

- «Revolução e Mulheres», DEZ, 75, entre as pp. 129-135; dito por Sara Barros Leitão, em «O teatro também se lê»

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